INTRO: E se um dia te perguntarem qual é o livro da tua vida? Foi esta a pergunta que eu fiz à minha querida amiga Nádia e ela prontamente respondeu: “O Amante” de Marguerite Duras.
Escolher um livro que me tenha inspirado, tocado o coração, que tenha ficado na memória guardado como parte do meu crescimento e amadurecimento, não foi tarefa fácil; há uns quantos livros, cada um numa determinada idade ou fase da vida, que me despertaram não só como rapariga e mulher como me criaram o bichinho da escrita e a facilidade para contar estórias.
Mas como precisava de salientar um para escrever um pouco da sua influência em mim, contar o porquê de ser mais especial que outros e dar a conhecer-vos uma obra significante, acabou por não ser tão difícil assim pois foi um dos primeiros romances que li e me despertou uma panóplia de sentimentos e sensações. Trata-se de uma obra autobiográfica sem parecê-lo, o que ainda mais adensa o mistério sobre se realmente tudo o que a autora nos narra se passou exactamente assim e dá-nos liberdade de imaginar um outro final, um outro crescendo de sensações, de acrescentar dúvidas e certezas.
Não foi por acaso que Marguerite Duras venceu com esta obra singela (lê-se de uma assentada) o Prémio Goncourt em 1984, tendo-se confirmado o génio literário de um nome cimeiro da literatura mundial; é uma obra que fica para o mundo, contendo toda uma vida num relato exemplar e minucioso de um mundo perdido, de uma época diluída no amanhecer de novos ideais e novas luzes.
A acção de “O Amante” passa-se na antiga Saigão dos anos trinta do passado século, capital do Vietname à altura quando ainda a presença colonial dos franceses se sentia, em últimos sopros de uma influência longa a Oriente. Os costumes da época, o desafiar de convenções sociais numa sociedade marcada por diferenças abismais entre ricos e pobres, entre colonizadores e colonizados, entre corações “quentes” e “frios”; uma cidade onde o calor afecta os corpos, onde as diferentes maneiras de viver ora se confundem ora se chocam, onde tudo é possível mas onde tudo se perde no mesmo instante que se conquista.
Uma bela e jovem francesa, no auge do seu despertar sexual com quinze anos, pobre e confinada a um colégio de raparigas ocidentais que se apaixona pelo elegante filho de um negociante chinês de vinte e sete anos, rico. E é deste encontro, narrado com uma beleza eterna e quase pueril, que se desencadeia uma paixão inquieta e dilacerante entre dois amantes isolados num mundo privado de erotismo e autodescoberta, desafiando convenções sociais (ricos e pobres jamais se misturavam).
Enquanto a personagem feminina vai despertando para a possibilidade de traçar o seu caminho no mundo, amadurecendo implacavelmente pela etérea realidade fugaz mas tão marcante, o seu amante não possui fuga possível do seu universo rico mas prepotente, marcado por severas regras de uma china fechada que nem colonizada se abrira ao ocidente na sua essência. A jovem é a própria autora num relato exacerbado de uma paixão inquieta e dilacerante por entre os infortúnios da pobreza, da relação frustrante com a mãe e seu irmão mais velho delapidador da riqueza devido ao consumo de ópio; uma vida de adolescência através das aparências impostas pela família, outrora abastada, cúmplice dos desesperos masculinos de um filho varão e onde o escape é a sua liberdade quando se despe psicologicamente num pequeno quarto da metrópole que nada vê mas tudo julga.
Para mim esta é pois uma obra de intensidade dramática, de amor fugaz mas único, de descoberta e abandono, de “coração ao pé da boca” e de imagens de uma beleza rara, erótica, simples, desconcertante. Sermos levados a viajar para uma época tão diferente da actual faz-nos entender perspectivas de vidas inusitadas, faz-nos reconhecer o quanto mudou o mundo mas o quanto se mantêm inalteradas tantas vicissitudes sociais, tantas regras despidas de humanismo e de como o amor pode ser ensinamento na fase mais frágil da vida de uma mulher: o fim da adolescência que dá lugar à transformação em mulher, em objecto de desejo masculino, em ninfa que tudo ganha ou tudo perde. Uma leitura que nos impele a mais, que nos faz questionar se seríamos capazes de tamanha ousadia numa sociedade diferente da nossa, num país diferente do nosso em costumes, em cores, em cheiros…
Ler este livro quando também eu passava por iniciar a minha maturação como mulher, sentir a inocência daquela jovem perdida mas determinada e vislumbrar a capacidade que existe no amor entre um homem e uma mulher por muito diferentes que aparentemente sejam, foi um marco na minha busca por outras realidades, outros mundos, novas sensações e despertares; li-o num ápice devorando cada palavra e assimilando aquela paixão tão intensa mas tão efémera, tão realista mas tão perdida por entre diferenças culturais e convulsões sociais no auge da descolonização francesa. Sentir cada insegurança da personagem, cada vitória, cada dúvida e cada riso como meus, como se me transformasse na jovem Marguerite por entre ruelas quentes e cheias de vida numa Saigão inebriante mas cruel para quem dela tem de se despedir.
Foi uma viagem que mais tarde retomei quando o filme baseado no romance estreou por terras lusas em 1992 tendo sido um sucesso de bilheteira mesmo com autores ainda pouco “conhecidos” do grande auditório cinematográfico de Hollywood. Só vi mais tarde, porém, com cerca de vinte e poucos anos em meados de 1998 no pequeno ecrã e mais uma vez me deixei envolver por aqueles sons, cheiros, pelas cores da Saigão ocidentalizada naquela cena inicial da viagem de barco através do rio Mékong quando sem saberem os dois amantes selam seu destino, fugaz mas eterno!