Ela tem vários sonhos guardados na gaveta esquerda da cómoda do quarto, onde dorme com o seu amor. Na mesma gaveta onde coloca as camisolas quentes de inverno. Porquê nessa gaveta? Porque, a seguir a um abraço, não há melhor aconchego que um pouco de lã. Ela trata bem deles mas por vezes esquece-os no agito das vidas, na importância sempre mais importante dos outros e na constante incerteza e medo de falhar. Eles não gritam, não discutem nem chamam a atenção, são filhos disciplinados e silenciosos. Naquela gaveta sente-se o cheiro da esperança tenuemente misturado com o da alfazema do sabonete nela deixado. A luz difusa do abrir e fechar lembra-a que há mais qualquer coisa ali além da camisola quente acabada de lavar.
Mais um dia passa, mais outro e ainda outro, nada acontece de novo, no movimento acelerado e constante dos dias, os filhos, o marido, a casa, a vizinha, o amigo, e tudo se sobrepõe aos seus pequenos tesouros guardados naquela cheirosa gaveta.
O curso de italiano, a viagem a Veneza, a carreira de fotografa profissional, a casa junto ao mar, o estúdio na capital,... e a vida que se acabou num sopro. Os filhos abrem a gaveta, sente-se o mesmo cheiro a esperança e alfazema. A mais nova está a estudar em Veneza, o mais velho corre o mundo de câmara fotográfica ao peito, a do meio gere o seu escritório de advogados na capital, o marido vive a sua reforma junto ao mar. Os sonhos sobrevivem-lhe mas ela morreu na esperança de um dia se tornar importante.